Era um círculo fechado para sempre.Mexia um pouco e achava uma valvula de escape.Fecha rápido que entrou tudo aqui dentro."Meu Deus!"Era a sua mão que regia o mundoTudo mudava, porque queria brincarMudou o lugar do mais e do menosDepois do recreio, quantos anos eu tinha?Ih, negativo! ...
A tua desgraçaDesceu pelo raloLembrou-se contenteDa semente, da linhaçaQue comia caladoE pelo ralo viajavaCheio de agradoQuando as calças arriavaE desgraçava o ralo!Esqueceu-se da dorDo ralo, do caladoFoi para o canavialViu um roedorPensou: "Coitado!"Não lhe queria malMas iria para o ralo. ...
E dizia, como se não bastasse, toda aquela droga. Lia e relia seus capítulos de letras. Vomitava seu latim (ficava tudo muito sujo). Até tatuava sua confusão de palavras naqueles papéis intocáveis. Eu achava aquilo tudo uma bobagem. Aos sessenta anos o que um velho há de escrever? Suas histórias vividas? Era velharia. Mil e oitocessentos não valiam nada em mil e novecessentos. E se me perguntasse, dizia mesmo, sem vergonha e sem medo: Era tudo uma bobagem. Pra quem escrevia? Se pensasse que fossem ler, haveria, com toda certeza, retornado a adolescência, com seus sonhos impossíveis e planos falíveis desenhados num pedaço cru de qualquer papel amarelado por sua pena um tanto quanto esguia.
E pensou que me esqueci quando, meio que acanhado, pôs-se a chorar por não conseguir lembrar-se daquela... Aquela. A palavra que havia fugido. Ela que foi esperta, mais do que eu. Fez suas malas e foi embora sem esperar que ele fosse atrás. Mas não a achou e chorou, chorou, chorou. Como se ela (a palavra) fosse ouvir os prantos e lamúrias de um velho escritor.
Era careca, resmungão e pobre. O que me fazia ainda estar ali? Bom, garanto que ele me pagava. Não sei como, mas pagava. Mas agora, posso até dizer que estava ali para querer saber o fim dessa loucura que o tomou. Queria mesmo saber se publicariam a terrível reminiscência desse velho esquecido. Algumas palavras me permitia ler. "Absurdo", "jovem", "linda"... Um clássico. Só não li o que mais queria: o fim. E, se bem que, por orgulho, não quis saber.
Aconteceu que um dia, quando menos esperava, o velho foi atacado por uma doença incurável. Essa palavra foi para amedrontar, mas era certo que lhe restava pouco tempo de "vida". Eu aclamei aos céus. Esse homem já havia vivido e sofrido o bastante. Era hora de despedir-se da vida e do povo que lhe conheceu e das coisas que atreveu-se a fazer, inclusive daquele livro estúpido.
Por sua pobreza invejável, negou-se a pagar uma enfermeira que fosse. Eu era quem fazia esse papel. "Amélia!" Gritava, fanho. "O velho aqui tá doente e dói". Ele tentava fazer com todo esse drama virasse poesia. Mas eu sabia que ele iria - ai, não consigo nem dizer - morrer.
Certa vez, quando ia servir-lhe um prato de sopa, vi que escrevia uma carta que não era breve. Tratei de esconder-me bem rápido e esperei que terminasse. Se fosse pra mim, pelo menos, não o fiz pensar duas vezes. Assim que passou uns minutos entrei com sua sopa já fria. Ele, como sempre, reclamou. "Velho rabugento!".
Três messes se passaram naquela confusão e, finalmente, o velho teve um treco e... Carlos "Velho" Dias morreu em vinte e dois de abril de mil novessentos e trinta. Foi quando eu me vi sem saber para onde ir. Decidi, primeiro, antes de voltar à roça da mãe, certificar-me de que o velho escreveu um testamento. Era pobre, mas tinha aquela casa e um livro, do qual não me esquecia um segundo.
E veio o tenente, o xerife, o doutor, o alfaite e até o presidente de uma associação qualquer... O testamento estava com Adelaide. "A carta!" pensei. A velha, quando moça, havia sido um grande amor do falecido. Não sei por quais razões o velho decidiu lhe mandar o testamento. Constava que a casa era minha, mas o livro era de Adelaide. Tentei contestar e disse que livro não era bem para que se deixasse de herança. Mas disseram-me "Desejo do morto é desejo do morto". Eu que já nem ligava se aquela pequena casa era minha, fiz logo um café preto e começei a pensar como iria colocar as mãos no livro, que nem ao menos sabia se havia sido concluído. E tive uma brilhante idéia: Iria falar com a velha Adelaide.
Alguns meses se passaram e tornamo-nos amigas. Amélia e Adelaide, uma dupla ótima. Ela me visitava e eu iria vê-la sempre. Ela era mais rica, então quando eu passava necessidade, Adelaide me mantinha bem. Uma dessas tardes de domingo, enquanto tomávamos chá em minha casa, disse a Adelaide que andava me sentindo mal e achava que iria adoecer. Ela, exagerada que era, exacerbou-se, por medo. "Que doença o que! A culpa foi tua, mulher, de ir comer na cozinha do Dorgival".
Por mais que Adelaide não quisesse admitir, eu estava doente e muito. Será que a maldita passou do velho falecido para mim? Deus me livre e guarde! A cama me esquentava e os olhos tristonhos e solitário de Adelaide me faziam adoecer mais. Ah, se ela soubesse, sorriria um pouco mais. O médico que chamou era amigo de Dorgival. Eu insisti que não havia necessidade de gastar comigo. Que ironia.
Era abril, de novo, e eu já não saía da cama. Adelaide, não sei por quê, adoeceu. E foi grave. Em menos de um mês tossia e o médico dizia que iria morrer. Já estava me acotumando com esse negócio.
Numa manhã chuvosa, Adelaide, com a pouca voz que ainda restou, disse-me "cama-a-cama" que o livro era, na verdade, para ser meu e que o velho só queria que tornássemos amigas. "Ele estava certo. Ele sabia que você o queria, apesar de tanto o cruscificar. Talvez o livro tenha sido escrito para ninguém ler. Mas nós lemos, mulher. Nós leremos." Ela disse assim, tossiu e durmiu. Durmiu pra sempre.
Chorei dias, semanas, meses. Contei quase um ano. Não sei se chorava pela perda ou pela consciência que tornou-se pesada desde as últimas palavras da velha falecida. Se eu tinha decidido ser íntima de Adelaide por interesse, já não era culpa minha se isso tudo fora previsto antes por um velho sábio. A minha doença nem ao menos era real. Fui má como uma rapoza e muito rápida. Suguei todo empenho da velha para sobreviver e conseguir o que mais queria: o livro. E se foi a minha falsa doença que a fez adoecer? Ela queria morrer antes de mim. Não suportaria a dor de ver sua quase-filha morrer. Senti-me a mais cruel das criaturas e suja... Muito suja. Eu poderia até gritar de tanta vergonha que senti.
Mas, como disse, quase um ano foi suficiente para recuperar-me. Costumava ser forte e queria ler o livro depressa, antes que essa "epidemia" de morte me pegasse. Li o livro em uma semana ou menos. E senti a consciência pesando de novo. Em pensar que fiz tudo o que fiz só para ler "isso".
O livro falava sobre Pernambuco e sobre as poesias do velho. E sobre suas profecias que se cumpriram na minha vida, inclusive, a morte de Adelaide. Confesso que senti um calafrio quando li essas tragédias que, realmente, aconteceram.
Só para finalizar o capítulo desse romance estúpido que aos sessenta, me fiz escrever, o testamento, escondido na última página do livro, não dizia nada além de:
"Que toda a minha poesia seja pública"
Esse foi seu testamento. Seu único bem precioso: a poesia. Deixado de herança para quem mais amou: o mundo. Não me pergunte por quê Adelaide inventou aquilo tudo. Talvez ela tenha seguido os passos do que leu, ou não. Eu nem quis cair aos prantos, entendi que a vida era assim. Adelaide, mais vivida que eu, sabia de meus interesses. Mas, boa como era, me fez aprender um grande ensinamento: A vida é muito maior do que nossas ambições. Ah, Adelaide. Ah, Carlos Dias...
o pingo na águaque irritavaera ela de novoque vinha e viaseu corpo cobertopor linho raroalta costuraolhos de ourocintilavam as jóiaso sopro do ventoque acalmavaera ela de novoque olha e tocasua arpa como um anjode asas curtasde penas longasque brilhavamcomo prata; prateadoo rangir dos dentesque enlouqueciaera ela de novoque...
Música está no ar. Música! E amor também. Porque é Natal. E eu amo isso. Mesmo que nada esteja dando certo. Ou que a coçeira esteja braba. Mesmo que tudo esteja quebrado e não tenha ceia de Natal no Natal. Deixa eu pensar que falo inglês. Que sou...
Isabella Mariano nasceu em 1992, no Rio de Janeiro, mas logo se mudou para Vitória. É jornalista, escritora, designer e mestre em Comunicação e Territorialidades. Em 2013, publicou o livro "gotas" e, em 2015, o "Cortes Lentos" - ambos de poemas.