Aí quando você abre os olhos tá lá a coisa. Atravessada igual espinha de peixe na garganta. Entranhada mesmo. Você vira, muda o lençol - joga longe, tá calor. Você fecha e abre o olho. O pesadelo é o mesmo daquele elevador que nunca chega, daquele voo que você nunca pegou. Acorda dolorida, meio desnorteada como se tivesse levado um soco na noite anterior. É nada. É só o dramin que forçosamente você decidiu tomar pra dormir. A náusea é da vida, Bela. É o tempo todo uma coisa no estômago que de repente dá um enjoo esquisito. Você compra uma bala de hortelã pra ver se passa. Ou daquelas pretas fortes, retadas, que em você nem cócegas mais faz. É o preço do amanhã, dizem né. Ou eu inventei isso agora. Aí as costas doem sempre e você já tem escoliose, lordose, seiqueláose. Toda hora um paracetamol - e você lembra da piada ridícula do para ce tá mal. Ri e depois pensa: "é verdade". Chega uma hora que nem sabe mais como seguir as condutas sociais que enquanto sociedade lutamos séculos pra construir. Parece que você tá desconfigurada. Como é que se chega num lugar? Tem que sorrir? Não precisa? Como que se começa uma conversa? E então não fala. É mais fácil o silêncio, verdade. A fala sempre é atravessada por outros e você não sabe lidar com isso mais. Você reúne seu lixo e tenta jogar fora sozinha. Lava a louça e acha que é o suficiente pro mundo. Você escreve, então. E lê. Aí lembra, né, Bela? Lembra do amor, da poesia. Lembra da conexão. Lembra da comunicação secreta das abelhas, das árvores, das formigas. Lembra da comunicação secreta entre eu e você, passado e futuro. Quase chora de felicidade de saber da beleza da vida. Escreve de novo e é mais bonito o texto. Deita, suspira, não dorme, porém. Depois de algumas horas, dorme. O sonho é outro. Você é uma onça. Você é todo mundo e ninguém. Você nem sabe se é isso mesmo ou só reflexo do última seriado que assistiu. Aí quando você abre os olhos tá lá a coisa de novo. Atravessada igual espinha de peixe na garganta.

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