Um pedido à Pachamama

Sempre pensei que fosse o tempo o meu espinho na carne. Sempre pensei que o maior problema era não saber ler relógio. Era me perder nos ponteiros e estar sempre atrasada. A desconexão com o tempo regulamentar é parte do problema, talvez metade dele. "Problema?", me perguntaria Nélia, minha psicóloga. 

Metade porque, agora percebo, o espaço também me atiça como um espinho na carne. A geografia das coisas. O estar, eu mesma, em um pedaço de terra, de chão, e ali me reconhecer, me sentir pertencente. Bobeira foi pensar em separar tempo e espaço, mas não é culpa minha se foi assim que me ensinaram desde que nasci. "Tempo é isto, espaço, aquilo", etc. 

São poucos os momentos - dos que consigo lembrar, vale dizer - em que me senti no lugar certo. Mas foram diversas as vezes em que, nesses poucos meses de terapia, disse algo como "estou deslocada, desconectada". Meu desejo, quase sempre, me faz querer outro lugar. Rio, São Paulo, Ouro Preto, Curitiba, Manaus, Argentina, e até Paris, Irlanda. Vitória, a cidade que me recebeu, filha revolta do próprio Espírito Santo, sempre emergia em mim como repositório. Lugar dos registros, das experiências, dos medos e das esperanças, mas não meu.

Talvez o erro comum seja querer um pedaço de lugar pra chamar de nosso. Nos últimos dias, o que mais fiz foi andar, andar e andar. O fôlego que não dava por conta da altitude me fez perceber o óbvio. Não tenho nada, além do corpo que deus me deu.  Isso por si só não é muito, porque esse corpo não se sustenta. É preciso ar, oxigênio, água, comida. Tudo isso é o lugar, o espaço, o território e, mais especificamente, a terra quem me dá.

Das andanças que a Bolívia me permitiu, senti no meu profundo, ontem mesmo, observando o céu limpo e estrelado de Copacabana (ou kota kahuana, como chamava o povo Aimará antes dos colonizadores espanhóis chegarem); senti que sou filha da Terra, com T maiúsculo. Pachamama, Gaia - ou qualquer que seja o nome que demos - é quem me tem. É ela quem me protege. É ela quem, se quiser, me leva desse plano, deste tempespaço. 

Não há porque querer me sentir pertencente, quando na verdade a difícil tarefa é aceitar me ver pertencida. A difícil missão de reverenciar e saber que não tenho nada, mas sou tida, gerada. A missão é aceitar os fluxos que me levam e, com eles, fazer jus à existência que me é concedida como benção. Entender que posso e não posso - sim, nesta exata contradição. 

Entendi isso antes de ontem, antes mesmo de ver os resquícios incas em território boliviano. "Antes", porque o tempo é um só. E sei que chorei, chorei madrugada adentro sem entender muito a insatisfação, o medo. Quando vi o lago Titicaca e o por-do-sol que descia sobre Copacabana, ao retornar, entendi e pedi à Pachamama, do fundo do meu coração, um pouco de energia para viver.

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