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Cortes Lentos

Este blog reúne o trabalho literário da escritora capixaba-carioca Isabella Mariano.

Sempre pensei que fosse o tempo o meu espinho na carne. Sempre pensei que o maior problema era não saber ler relógio. Era me perder nos ponteiros e estar sempre atrasada. A desconexão com o tempo regulamentar é parte do problema, talvez metade dele. "Problema?", me perguntaria Nélia, minha psicóloga. 

Metade porque, agora percebo, o espaço também me atiça como um espinho na carne. A geografia das coisas. O estar, eu mesma, em um pedaço de terra, de chão, e ali me reconhecer, me sentir pertencente. Bobeira foi pensar em separar tempo e espaço, mas não é culpa minha se foi assim que me ensinaram desde que nasci. "Tempo é isto, espaço, aquilo", etc. 

São poucos os momentos - dos que consigo lembrar, vale dizer - em que me senti no lugar certo. Mas foram diversas as vezes em que, nesses poucos meses de terapia, disse algo como "estou deslocada, desconectada". Meu desejo, quase sempre, me faz querer outro lugar. Rio, São Paulo, Ouro Preto, Curitiba, Manaus, Argentina, e até Paris, Irlanda. Vitória, a cidade que me recebeu, filha revolta do próprio Espírito Santo, sempre emergia em mim como repositório. Lugar dos registros, das experiências, dos medos e das esperanças, mas não meu.

Talvez o erro comum seja querer um pedaço de lugar pra chamar de nosso. Nos últimos dias, o que mais fiz foi andar, andar e andar. O fôlego que não dava por conta da altitude me fez perceber o óbvio. Não tenho nada, além do corpo que deus me deu.  Isso por si só não é muito, porque esse corpo não se sustenta. É preciso ar, oxigênio, água, comida. Tudo isso é o lugar, o espaço, o território e, mais especificamente, a terra quem me dá.

Das andanças que a Bolívia me permitiu, senti no meu profundo, ontem mesmo, observando o céu limpo e estrelado de Copacabana (ou kota kahuana, como chamava o povo Aimará antes dos colonizadores espanhóis chegarem); senti que sou filha da Terra, com T maiúsculo. Pachamama, Gaia - ou qualquer que seja o nome que demos - é quem me tem. É ela quem me protege. É ela quem, se quiser, me leva desse plano, deste tempespaço. 

Não há porque querer me sentir pertencente, quando na verdade a difícil tarefa é aceitar me ver pertencida. A difícil missão de reverenciar e saber que não tenho nada, mas sou tida, gerada. A missão é aceitar os fluxos que me levam e, com eles, fazer jus à existência que me é concedida como benção. Entender que posso e não posso - sim, nesta exata contradição. 

Entendi isso antes de ontem, antes mesmo de ver os resquícios incas em território boliviano. "Antes", porque o tempo é um só. E sei que chorei, chorei madrugada adentro sem entender muito a insatisfação, o medo. Quando vi o lago Titicaca e o por-do-sol que descia sobre Copacabana, ao retornar, entendi e pedi à Pachamama, do fundo do meu coração, um pouco de energia para viver.
Não há um abismo em mim e você
há um rio
que, antes córrego, faz navegar ideias mil
Não há um fosso entre mim em você
há caminho, estrada a percorrer
Brotando canteiros mil
Não há o vácuo entre mim e você
há o espaço
lugar de andanças dessas ondas mil
sonoras ou não
Entre mim e você,
possibilidades grandiosas
de, na diferença,
sermos eternos
Aí quando você abre os olhos tá lá a coisa. Atravessada igual espinha de peixe na garganta. Entranhada mesmo. Você vira, muda o lençol - joga longe, tá calor. Você fecha e abre o olho. O pesadelo é o mesmo daquele elevador que nunca chega, daquele voo que você nunca pegou. Acorda dolorida, meio desnorteada como se tivesse levado um soco na noite anterior. É nada. É só o dramin que forçosamente você decidiu tomar pra dormir. A náusea é da vida, Bela. É o tempo todo uma coisa no estômago que de repente dá um enjoo esquisito. Você compra uma bala de hortelã pra ver se passa. Ou daquelas pretas fortes, retadas, que em você nem cócegas mais faz. É o preço do amanhã, dizem né. Ou eu inventei isso agora. Aí as costas doem sempre e você já tem escoliose, lordose, seiqueláose. Toda hora um paracetamol - e você lembra da piada ridícula do para ce tá mal. Ri e depois pensa: "é verdade". Chega uma hora que nem sabe mais como seguir as condutas sociais que enquanto sociedade lutamos séculos pra construir. Parece que você tá desconfigurada. Como é que se chega num lugar? Tem que sorrir? Não precisa? Como que se começa uma conversa? E então não fala. É mais fácil o silêncio, verdade. A fala sempre é atravessada por outros e você não sabe lidar com isso mais. Você reúne seu lixo e tenta jogar fora sozinha. Lava a louça e acha que é o suficiente pro mundo. Você escreve, então. E lê. Aí lembra, né, Bela? Lembra do amor, da poesia. Lembra da conexão. Lembra da comunicação secreta das abelhas, das árvores, das formigas. Lembra da comunicação secreta entre eu e você, passado e futuro. Quase chora de felicidade de saber da beleza da vida. Escreve de novo e é mais bonito o texto. Deita, suspira, não dorme, porém. Depois de algumas horas, dorme. O sonho é outro. Você é uma onça. Você é todo mundo e ninguém. Você nem sabe se é isso mesmo ou só reflexo do última seriado que assistiu. Aí quando você abre os olhos tá lá a coisa de novo. Atravessada igual espinha de peixe na garganta.
Não saberia dizer se foram mais belos os dias que passei com ou sem você. Isso não significa de nenhuma maneira que você não faça com que eu me sinta vivendo algo único. É só que nunca, em nenhum lance de segundo, em nenhuma sombra de hora, você me fez sentir que eu precisava de você ou que eu não pudesse viver sem você. Por muito tempo, achei, ingênua, que isso era sinônimo de desamor, sem notar porém que maldizia o que mais ansiava: a liberdade.
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Isabella Mariano
Isabella Mariano nasceu em 1992, no Rio de Janeiro, mas logo se mudou para Vitória. É jornalista, escritora, designer e mestre em Comunicação e Territorialidades. Em 2013, publicou o livro "gotas" e, em 2015, o "Cortes Lentos" - ambos de poemas.
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