Modernidade

Reuniram-se, em um cenário antiquado, com a finalidade única e, teoricamente, imutável de ingerir oralmente seus líquidos aguados com sabores variados. O famoso chá das quatro. Eu, como detesto chá, tentei descrever de uma forma menos nojenta.
Jordana, a mais velha, e Lorena, a mais nova, eram quem comandavam a facção, ou melhor, o encontro. Organizavam dia, horário e local. Como se fosse uma comemoração excelente e de essencial importância na vida de cada uma das irmãs Dias.
Jordana chamava atenção de uma forma tão diferente, que todas dispararam a rir, internamente, claro.
- Hoje a reunião ocorre por motivos óbvios.
Nesse momento, ouve-se (ou não se ouve?) um silêncio inquietante. Daqueles quando se esquece o que virá a seguir ou, simplesmente, a mente começa a ficar vazia, excluindo todas as palavras que você sabe na vida. Uma por uma.
Lorena, inquieta, berrou:
- Que comece o chá!
Meu Deus! Parecia uma corrida de cavalos, mas de uma forma chique, cliché e ponderada. Na high society tudo é ponderado. Eu achava que era.
Jordana estava na cor de seus botões rosados. Nervosa como era, a audácia da irmã a fez ferver o sangue. Logo ela.
Porém, Lorena sabia dissimular muito bem. Parecia não perceber e se agradar da situação antiquada que levava desde a morte de Alma, sua irmã.
Algumas horas se passam, trechos de livros são lidos. O chá é reposto, se me permite dizer. E a vida vivendo, o vento passando. Bate a hora da noite, quando as moças devem ir. Como se vivessem no século XVII.
Sem medo, nem hora. Lorena atreveu-se a levantar e dar um discurso final. Nada preparado, mas, completamente, proposital. Antes mesmo que começasse a dizer, Jordana já estava muito nervosa. Bateu na mesa e a olhou bem fundo, dizendo:
- Insolente!
- Como se eu fosse sua criada. Sou jovem e faço o que bem quero. - Era ela mesma dizendo, Lorena.
Todas voltaram a se sentar. Talvez pela ética, pelo medo ou, provavelmente, pela curiosidade.
- Você - Começou a dizer e andar em direção a irmã mais nova - Que sempre me ajudou, sempre quis que tudo desse certo. Por que se comporta dessa maneira?
- Querida irmãzinha, eu sempre quis que tudo desse certo, até pegar o jornal e ver a data. Bem - Parou e deu uma olhada, estratégica, a todas da mesa - Pergunte, aqui mesmo, quem sente prazer em estar aqui ao invés de estar se divertindo com amigos, maridos ou agregados.
O rosto de Jordana parecia que ia explodir. Ela era a pessoa mais tradicional que existia naquele século. E Lorena, que ironia, estava no auge de seus 16 e contava Dom Casmurro nas esquinas para quem quisesse ouvir.
- Quanta petulância! Como ousa agir assim enquanto vivemos um luto pela...
- LUTO? Jordana, Alma morreu há 10 anos! E outra, duvido que você está sozinha por todo esse tempo...
Muitas risadas se libertaram nesse momento. Lorena estava ganhando.
- Estou sim! Em memória de Alma Dias, uma guerreira, uma irmã que sempre cuidou de nós.
- Mas eu continuo duvidan-do!
Nessa hora, rapazes, Lorena deu uma piscada com o olho esquerdo e umas cinco pequenas se ajuntaram a Jordana. Não entendi mais nada, quando vi, por baixo de sua grande bata, havia uma roupa bem ousada.
- É disso que eu estou falando, irmãzinha. E não se envergonhe, porque ninguém pode te julgar. Afinal, estamos aqui só para te agradar. Mas meus dezesseis chegaram precocemente e com sede de liberdade. É esse, minha amiga, meu protesto contra a sua loucura.
- Loucura?
Envergonhada e humilhada, a mais velha puxou a irmã pelos cabelos e deu um tchau bem alto para todos. Chegou ao quarto, bateu a porta forte, ofegante.
- Parabéns, pequena, pela dramatização. O plano saiu perfeito. Moderníssimo.
E, finalmente, depois de décadas, a modernidade veio morar com elas.

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1 Comentário(s)

  1. Ainda me questionava se seria possível se produzir tão belamente as palavras, juntar as letras com tanto primor como nos Tempos Modernos, quando o Romantismo ainda estava na moda...
    Hoje não questiono mais...
    Sim, é possível!!!

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