Amie

Nossos olhos fitavam a arma de um crime inafiançável. As lágrimas caíam de seus olhos num curso muito natural e não pretendiam parar. Eu cuspi e tinha o gosto do seu suor. Seu pranto era constante e dizia, inconsolável: “Eu não faço esse tipo de coisa”. Restava-me apenas concordar e repetir, repetir até ficar diferente. A minha inconsciência pesava sobre a minha consciência dizendo “Evoé Baco! Evoé Vênus!”, mas eu sabia que era o momento errado para alguém novo.
Seu rosto parecia transfigurar-se, enlouquecendo. Uma música insistia em tocar sem parar e cantava “Is that alright?”. Pronunciei-me, mas foi um equívoco. Se estivesse carregada, ela teria me matado. “Amor um mal”. Provavelmente, queria me calar durante o tempo que durasse a canção.
Lancei-lhe um olhar frio, gelado. Mas ela me atirou ao chão com levantar de suas pálpebras. Estava nua, sentada na beira da cama. No vão da porta, eu me apoiei, tragando mil sensações e, às vezes, um cigarro no canto da boca.

Ela se vestiu e finalmente.
***

Nunca tinha percebido quão cinza era o meu quarto, a minha vida. O chão me puxava. Sentei, deitei, chorei. Queria sentir seus passos, quando fosse voltar. Dormi por uns segundos e sonhei que fazíamos sexo, ao som da tempestade, num dia gelado. Você dizia que já estivera aqui tantas vezes e tirava o cinza das paredes com suas marcas de batom. Acordo, solitário. Lá estava eu a desfiar a recordação do sineiro, da viúva e do microscopista.

Abri uma garrafa de vinho e deixei a canção me invadir.
***

Amanheceu e o silêncio era como uma xícara vazia. Escrevi duzentas cartas. Em algumas eu me desculpei, em outras a xinguei. Mas em todas pedi que voltasse. Ora dizia ser um mentiroso que merecia morrer, ora declarava-lhe um amor incondicional. Ouso dizer que não menti. Nas cartas. Precisava que ela soubesse e se lembrasse de quem eu era. Um romântico assumido, louco e desesperado. Não tinha outra saída, mas enviei apenas uma.

“Eu amo sua depressão e amo sua dupla personalidade. Eu amo quase tudo o que você tem a oferecer”.
***

Num dezembro cinza e cansado, as pessoas me desejavam feliz natal. Completamente inapropriado. Sentia falta dela, das mãos que sabiam exatamente onde tocar numa manhã de natal. Pude sentir seu cheiro, doce perfume. Era um telegrama.

“Querido,
Eu me lembro bem da primeira vez que vi seus olhos melancólicos. Lembro bem, porque a minha mente parou de funcionar quando te vi. Queria que estivesse aqui, porque conheci coisas maravilhosas. Estou distante, muito distante. Só quero te pedir que seja feliz. Eu sinto sua tristeza me chamando. Mas eu não posso voltar.
Estou casada. Feliz natal.
Amie”

Chorei, bebi e fumei. Meu carro estava me esperando. Dirigi a noite toda. “Que merda essa mulher quer de mim?”. Foda-se.
***


Abria e fechava o meu isqueiro na lentidão de quem estava embriagado e a observava do outro lado da rua. Entre uma e outra tragada do meu cigarro, eles se tocavam. A minha xícara estava vazia. Mas ela estava feliz, sorria mesmo enquanto falava.

Fui o seu maior erro.

Um garoto lhe entregou um guardanapo em que estava escrito “Um brinde, querida”. Ela limpou os rubros lábios e mandou de volta.
Eu posso esperar.

You May Also Like

2 Comentário(s)

  1. achei esse texto maravilhoso, li varias vezes rsrsrsrs

    ResponderExcluir
  2. Nossa, muito bom, bella!
    Sério, fiquei extasiada.Você escreve muito!

    (:

    ResponderExcluir