A estação das flores.

Eu não sei muito sobre coincidências, até porque não acredito muito nisso. Mas quando "destino" parece não ser a palavra certa, os acasos da vida mostram bem que são apenas simples coincidências.
Há sempre um certo dia em que se decide tudo sobre tudo, mesmo que possamos voltar atrás e mudar o quadro, saberemos, nós e todos que nos rodeiam, que houve uma vez que fizemos a decisão separando, em um ponto crucial de nossa biografia, o antes de o depois.
Mas eu admito que não esperava esse dia tão cedo. A gente parece viver mais do que pensa. E cedo não significa que eu era adolescente, nem tampouco jovem. Havia chegado aos 37 anos, tinha mulher e um filho já casado. É. Fui naquela onda hippie-underground e tive Cauã aos 17 anos. Casei-me cedo. Cansei de casar mais cedo ainda. Minha esposa chama-se Magnólia. Que mania de flor que esse pessoal tinha. Era Dona Rosa aqui, Rosália ali, uma Margarida para não sobrar. Já vi até Tulipa, juro. E para piorar a irmã de Magnólia tinha um nome mais florido ainda: Angélica do Rosário.
Voltando ao assunto principal, na época em que tive meu dia decisivo, eu já nem me sentia casado. Eu e Magnólia nos relacionávamos rotineiramente, como um trabalho. Eu acordava cedo para ir à redação, ela fazia o café e a janta, pois na hora do almoço ia para o consultório, era psicóloga. Encontrávamo-nos às 21h para rimos do filme velho da televisão e dormirmos abraçados, como jovens em lua-de-mel. Pode parecer romântico, mas eu já achava cansativo. O sexo vinha no máximo três vezes na semana.
Eu sempre pensei que quando fosse estar casado há vinte anos com alguém, eu fosse ser o homem mais gentil e cavalheiro do mundo. E eu era, mas eu pensava que as minhas atitudes fariam da rotina, uma aventura a cada dia. Mas não foi bem isso que meu destino quis.
O dinheiro que ganhávamos era suficiente, quando sobrava, eu comprava livros e ela flores, talheres de prata ou louça de cristal. Mulher tem disso.
Eis aí o meu prefácio. Até o dia, que me lembro bem, foi quando o time de futebol de salão do pessoal do jornal tinha ganhado o campeonato regional. Dia 27 de março de 1988. Todo o povo da cidade se movimentou para ver a final do campeonato, assim que acabou, a multidão de fãs, loucos ou indiferentes se apossaram dos bares da cidade. Nunca vi tanta gente querendo beber de uma vez. Alguns comemoravam, outros choravam pelos problemas do dia, mas a maioria estava ali por não haver mais o que fazer.
Esse dia era mesmo para ter sido excepcional, já que eu não estava lotado de trabalho e me dei ao luxo de sentar à mesa de um café, pedir um capuccino com chocolate e tentar umas prosas em uns papéis perdidos.
Não sei se mulheres bonitas que querem passar despercebidas escolhem dias como esse para surgirem na cidade, mas sei que ela decidiu por assim fazer. Eu estava com um charuto, antigo, que meu chefe havia me dado, por alguns favores comuns que fazemos à homens como chefes. E forçava uma cara de intelectual, bem, de mais intelectual, porque quando se é jornalista essa cara vem sem querer. Rabiscando um dos incontáveis guardanapos que havia na mesa. É sério, eles pareciam intermináveis, quase diziam que eu deveria ficar ali até o amanhecer.
Ao levantar meu pequenos olhos cor-de-mel, eu a avistei. Se era cena de filme, ou não, eu não conseguia desgrudar o olhar de seus pés, suas sandálias, seu andar e de tudo. Era um pacote de presente. E eu queria para mim, claro. Iria completar 38 em uma semana.
Por acaso do destino, ela tropeçou e derramou todos os papéis que estavam em minha mesa. Eu fingi que eram importantes, e usei meus dons de ator para convencê-la disso.
- Não deixe escapar um. Sem eles eu estou ferrado.
A moça se assustou, mas foi uma reação normal. Um pouco ou bastante (tanto faz) encabulada, ela olhou-me de canto, que só via sua bochechas rosadas, dizendo palavras tão sutis que quase não ouvi. eu estava em transe, ainda.
Despertei quando ela estendeu a mão para cumprimentar-me.
- Que o prazer seja meu. Chamo-me Escarlate.
"Meu Deus!", pensei tão forte que acho que ouviram. Que nome lindo ela tinha. Nada melhor do que Escarlate. Era a cor das suas bochechas, das suas unhas e de seus sapatos. Pedi para que sentasse, pois parecia ter uma grande história a contar. Ela pareceu que iria resistir, mas cedeu sem insistência. às vezes, precisamos mesmo é de companhia.
- Porque veio para cá? Há de ter família em outro lugar que te guarde.
Ela parecia ter uns vinte anos no máximo.
- Venho a procura de outra vida. As que já tive me cansaram as pernas. Se eu pudesse passar por aqui, deitada numa rede, meus pés de bailarina exausta, agradeceriam sem hesitar.
- Você fala como artista. O que faz da vida?
- Faço arte. Danço, pinto e canto.
- Se fizesse mais, casaria contigo. - Dei umas risadas de velho, como se tivesse 47 anos.
- Bom, eu escrevo, também.
Até hoje, não sei se fez para que eu a pedisse em casamento, ou apenas para continuar a conversa e cortar meu barato. Acasos acabam me confundindo por inteiro. Decidi que iríamos ser amigos. Contei a ela sobre a minha infância e sobre meu ofício. Ela me disse da vida dura que teve e dos homens aos quais já pertenceu. Trocamos confidências, logo depois que pedi um vinho.
Nem pensei em Magnólia, nessa hora. Talvez ela estivesse lendo meus livros, relendo suas cartas antigas, como gostava de fazer. Lustrando os móveis, os talheres e as louças. Ou comemorando com as amigas, numa dança única, a alegria de ganhar e de perder. Magnólia era tão romântica. E bela, também.
Quando escarlate disse-me sua idade, arregalei os olhos espantado. Já havia chegado aos 32. Não lembro se disse que parecia mais nova, mas tenho certeza que disse das bochechas. Eu as amei de cara.
Nessa noite, eu a levei por toda a cidade, de madrugada, o que não era problema, porque havia muitas pessoas na rua e a noite parecia não acabar. Disse a ela sobre tudo e expliquei todos os mistérios da ilha.
Quando acabou, parei em frente a prainha, onde, incrivelmente, estava deserta. Logo naquele dia tão tumultuado. Ela me olhou como quem não devesse nada a ninguém, sorriu e foi correr pela areia. Fui logo após.
Eu posso dizer que nem Magnólia declamando poesia era tão bonita quando Escarlate correndo, como moça sem rapaz. Ela me chamava. E me seduziu completamente, fui vítima do poder feminino. Quando pude encostar nela, já não era sutil, era romântico. Toquei-lhe como me pediu pelos olhos e naquele dia eu experimentei de uma felicidade que achava que estava ausente para sempre.
Continuamos a nos ver um tempo, mas não muito tempo. Eu nunca fui de querer ter uma amante. Acho tão machista. Quis ter um papo com a dona, a que me possuía, de verdade, naquele tempo.
- Magnólia...
- Sim, querido?
Levantei-me e fingi uma dança, sorrindo e disse-lhe:
- Que se um cravo que tem uma tulipa, bonita como orquídea, viu uma rosa, vermelha de doer, ardeu de paixão, amor ou seja lá o que for. Deu-se de presente e triste ficou, porque a tulipa lhe esperava, mansa como uma margarida regada. Que há de fazerem os dois?
Magnólia fechou a cara. De flor, meu irmão, essa mulher entendia muito bem. Graças a Deus, ela era a mais calma que já havia conhecido, caso contrário teria levado um copo na cabeça.
Ela se sentou, me olhou fundo, querendo me atingir e disse-me:
- Ou se arranca a rosa vermelha do jardim, ou afastam o cravo e a tulipa. Que o destino do cravo ele que sabe, mas flor que é flor, exala para todos os lados.
Ela, como sempre, devolveu-me uma resposta bem melhor da que eu esperava. Olhei-a firme, querendo dizer que a amava, mas não adiantaria. Ela sabe o que sinto. Fiz que sim com a cabeça, que iria trancar-me no quarto e só sairia quando decidisse.
Maldita idéia. Como sou um homem de palavra, fiquei no meu quarto. Louco, pirado. Pensando comigo, falando e até, gritando. Seria Escarlate uma diversão, daquelas que o marido sempre tem depois de anos de casado? Ou seria o meu novo grande amor? Será possível que terei apenas um?
Dúvida infernal.
Sai do quarto. Decidi que jantaríamos os três, não escolhi nem uma, nem outra, mas havia decidido algo: o fim dessa trama não estava mais em minhas mãos, e sim nas delas.
No dia do jantar, Escarlate trouxe consigo Daniel, um amigo de longas datas, alegando que ele estava passando uns dias em sua casa.
O jantar foi melhor do que eu imaginava. Magnólia sempre educara e risonha. Ela era incrível demais. Fazia tudo sempre bem feito. A comida, então... Nem se fala.
Quando fui dormir, ela não disse uma palavra, apenas sorriu levemente. Eu acho que era um sorriso. Mas tudo bem, eu não queria papo, queria pensar.
Para resumir um pouco a história, passaram-se dois anos na mesma situação. E a rotina já havia me pregado a maior peça. Acho que até eu ri de mim, numa dessas tardes que o trem passa e não se ouve nada além dos barulhos do trilho.
Tina 39 anos quando Magnólia pediu divórcio. Eu poderia dizer que pirei quando ela veio me dizer isso. Disse, em tantos rodeios, que não aguentava mais minha farra de menino com duas moças e, independente do que eu dissesse, era assim que sucederia. Que eu podia fazer? Era vítima de tudo. Das mulheres sedutoras e das determinadas.
Fiquei morando sozinho. Quando soube que minha ex-esposa, havia ido morar com um holandês intelectual, tratei logo de trazer Escarlate pra dentro de casa.
Não nos casamos, mas eu me sentia casado. Engraçado, , vida? Engraçadíssimo. Eu trazia cada dia uma flor diferente, mesmo que repetisse, de vez em quando, era diferente das semanas passadas. Ela dançava sempre para mim, cantava uma de suas novas canções no violão que dei-lhe.
Eu me sentia homem e o melhor de tudo: eu me sentia novo. Escarlate era tudo o que eu queria e tudo o que eu precisava. Sem pôr, nem tirar. Éramos eu, escarlate e os discos de vinil que ela trazia sempre.
Um dia ela trouxe comida chinesa. Nem sei de onde ela tirou. Estava com um perfume estranho e chegou dizendo que Daniel estava voltando à cidade e iria hospedar-se em nossa casa. Fiquei furiosos, sem demonstrar.
- Boa essa comida, ? Adoro a cozinha chinesa.
- Nem todo mau é completamente mau, e nem todo bom é completamente bom.
Ela fez uma cara de que não havia entendido. Então eu disse:
- Essa foi a única coisa que aprendi com os malditos chineses.
E me retirei da mesa, bravo. Bravo, mesmo. Quem era esse cara que vinha querer roubar minha felicidade e minha mulher? Não queria ele por perto.
Quando Daniel chegou, a casa virou um inferno. Eles ficavam até de madrugada conversando e ouvindo o vinil antigo que ele ganhara da avó, tomando o vinho que eu comprei. Eu, sentado, escrevia e fumava aquele charuto, observando-os discretamente.
Acabou que Daniel se mudou para nossa cidade, encontrou um casinha próxima a nossa. Eles se viam todos os dias. Eu ficava doido de pensar o que acontecia quando eu estava ausente.
Uma vez, me deram folga na redação. Não fui para casa. Comprei flores e fui visitar Magnólia e o holandês bonitão.
Eles me receberam bem, sem sustos e nem nada. Apenas alegria. Era o jeito dela: incrível. Mas assim que entrei na casa, notei algo estranho. Estranhíssimo. As paredes eram de madeira e os lustres pareciam cristais originais, caros. As louças, espalhadas pela casa faziam parte de uma famosa coleção chinesa. Os tecidos de todos os lugares: as cortinas, lençóis, panos e a maioria das roupas, eram tecidos indianos. Fiquei meio acanhado e desconfiado, mas imaginei que fosse idéia de Magnólia no ouvido do tal coitado. Mulher tem disso. E alguns homens também.
Depois desse dia, ela não parou de me ligar e me procurar. Nos viámos algumas vezes. Eu prefiria ficar em casa, observando Escarlate e Daniel. Odeio esse nome... Daniel.
Certa vez, Magnólia me chamou para visitá-la e, para minha surpresa, o galã estava ausente. E, sem mais delongas, fui novamente a vítima. Ela me seduziu e passamos a noite juntos. Foi maravilhoso.Ela nunca esteve tão perfeita.
Ao entrar em casa, Escarlate me fuzilou com os olhos e gritava, furiosa, perguntando onde é que eu estive, que cheiro era aquele, por que estava com cabelo desarrumada e por que eu queria tomar banho. Eram tantas perguntas que nem sei se ela queria saber as respostas.
Mas como eu era honesto, respondi:
- Passei a noite com Magnólia.
Ela nunca gritou tanto em sua vida. Estava muito nervosa. Acho que fez jus ao seu nome, de uma vez por todas. Eu, que já nem ligava, estava gostando daqueles ciumes, daquela atenção só pra mim, nem que fosse pra brigar comigo. E, por fim, disse que se eu não a visse nunca mais, ela não me deixaria. Eu concordei. Mas a verdade foi que não conseguia parar de vê-la. Principalmente, quando soube que o tal holandês era um modelo homossexual, tentando passar de hétero para a família, em um momento trágico de sua vida. Eu ri demais de mim mesmo.
- Se não fosse isso, talvez nem teria chamado Escarlate para morar comigo.
Foi o que disse quando Magnólia revelou-me a verdade. Rimos bastante nesse dia. Ela leu alguns poemas, enrolada em lençóis indianos. E eu contei de algumas crônicas da vida, momentos que ela perdeu estando com ele.
Aconteceu que terminei com Escarlate, pois descobri que ela tinha um caso com Daniel. Finalmente! Desejei felicidade, mas bem longe da cidade. Não que eu quisesse fazer rima.
Magnólia voltou ao lar. Compramos um gato, branco e velho. Para nos acompanhar a idade. Já tinha 48 anos.
Vivemos muito bem nossos dias. Viajamos bastante, e dividíamos todas as tarefas e todo o carinho. Mas ela adoeceu, uma tuberculose das braba atingiu minha amada e ela se foi ao encontro do paraíso, seu jardim oficial.
Eu fiquei só. E até hoje estou. Dez anos depois, não quis nenhuma outra mulher. Nem Escarlate, maldita escarlate, nem nenhuma outra com bochechas avermelhadas ou que me pedissem dinheiro. Eu me trancava em casa, mesmo aposentado, escrevia cartas a ela. Cartas destinadas ao céu. Cozinhava suas comidas preferidas. Comparava talheres de prata, para agradá-la. Uma vez, juntei dinheiro e comprei um lustre, muito chique. Acho que ela deve ter chorado, porque choveu muito.
De qualquer maneira, meu filho, eu lhe escrevo esses sentimentos para que não se esqueça que esse homem velho, que já parte, nunca deixou de amar sua mãe, mesmo enganado pela paixão. A paixão dói e é vermelha. Esses pedaços da minha vida, eu já havia escrito esperando exatamente essa ocasião.
Queria me desculpar pela ausência na vida dos meus netos. Eu virei avô muito cedo, estava ainda vivendo a vida com duas mulheres incríveis. Espero que me entenda, mas não faço questão de me justificar. Já estou partindo. E quando eu for de vez encontrar sua mãe no jardim dela, você pode ficar com tudo o que tenho. Todas as jóias antigas, os livros, a casa, a fornalha do porão e as minhas experiências poéticas. Tudo.
Bom, Cauã, manda um beijo pra Júlia, pro Pedro e para os meninos da Renata Galvão. Por favor, doe os meus órgãos e escreva na minha lápide o que quer que seja, mas que seja um adeus. Agora vou tomar meu remédio, e se eu morrer até lá... Boa sorte.
Abraços e sorrisos,
Papai.

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1 Comentário(s)

  1. Vc não é normal. acho que não... Acho que isto é um elogio. pelo menos deveria...rs

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